
Judiciária lembrou ao primeiro ministro a sua predisposição para “colaborar ativamente” na investigação, mas Montenegro remeteu a investigação para a Câmara de Espinho e Autoridade Tributária. O NOW revela a troca de emails.
Carregando um extenso dossiê debaixo do braço, o então candidato a primeiro-ministro Luís Montenegro garantiu, a 30 de dezembro de 2023, aos jornalistas que se as autoridades o solicitassem, as “faturas e a documentação” da obra da sua moradia, em Espinho, lhes seria disponibilizado. A 15 de julho de 2024, já como primeiro-ministro, a Polícia Judiciária escreveu-lhe um email, recordando-lhe a sua predisposição para “colaborar ativamente” com a investigação, mas Luís Montenegro não entregou qualquer documentação, fazendo até questão de, no final do email, referir que, naquele momento, praticamente só utilizava o email que lhe estava atribuído, já na qualidade de primeiro-ministro. O NOW revela a troca de emails.
A comunicação da Polícia Judiciária foi enviada, a 15 de julho de 2024, para o email do PSD atribuído a Luís Montenegro. Foi através deste que, em dezembro do ano anterior, o líder do PSD pediu esclarecimentos à Procuradoria-geral da República sobre a existência ou não de um inquérito-crime relativamente à construção da sua casa, em Espinho. “Independentemente de ser o primeiro interessado em afastar qualquer dúvida de natureza criminal ou administrativa (e até ética) sobre esse assunto, e bem assim de pugnar sempre pelo normal funcionamento dos mecanismos legais e democráticos de escrutínio, a verdade é que a dimensão mediática da notícia subjacente ao pedido do senhor jornalista, mormente num período pré-eleitoral como o que vivemos, suscita e necessidade de saber do respetivo fundamento de veracidade”, escreveu Luís Montenegro.
Na resposta, o procurador Sérgio Pena, chefe de gabinete da então Procuradora-geral, Lucília Gago, confirmou a existência do processo, remetendo o pedido de esclarecimento de Montenegro para a investigação que corria no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto.
A resposta de Sérgio Pena seguiu no dia 29 de dezembro. Um dia depois, Luís Montenegro deu a tal conferência de imprensa, na qual garantiu que “cada cêntimo” investido na construção da sua moradia era fruto do “seu trabalho” e da mulher, Carla Montenegro. Sobre as suspeitas de ter obtido benefícios fiscais de forma ilegítima, o então candidato a primeiro-ministro declarou:"Tive o mesmíssimo tratamento que todos os cidadãos que se encontravam na mesma área”.
Ao mesmo tempo, exibindo um dossiê de cor azul, carregado de papel, Luís Montenegro afirmou estar na posse de “todas as faturas” e documentação da obra. “Será disponibilizado às autoridades se elas assim o solicitarem", declarou.
O pedido da Polícia Judiciária do Porto seguiu a 15 de julho de 2024: “Sendo do conhecimento público que V.Exa se predispôs a colaborar ativamente na prestação de esclarecimentos e/ou no fornecimento de documentação de suporte pertinente para o esclarecimento dos factos, vimos por este meio comunicar-lhe que nos encontramos recetivos para esse fim”, escreveu a inspetora, acrescentando que privilegiava o envio de documentação em formato digital.
A 22 de julho de 2024, num extenso email, Luís Montenegro garantiu não ter tido acesso a “nenhum benefício fiscal que não tivesse sido atribuído a qualquer outro cidadão”, diretamente pela lei ou pelos regulamentos aplicáveis, “sempre por intervenção e/ou decisão das autoridades competentes”, identificando-as: “Câmara Municipal de Espinho e Autoridade Tributária”.
“Embora tenha muita da documentação que sustenta a afirmação anterior”, escreveu o já primeiro-ministro, “ninguém melhor do que essas entidades a pode facultar e explicar”, concluiu, não dando qualquer sinal de que enviaria o que quer que fosse.
Montenegro, no mesmo email de reposta à PJ, fez questão de referir ter sido contemplado com “três benefícios fiscais, apesar de ter tido à minha disposição outras vantagens que, por desconhecimento ou negligência própria (como reduções e isenções de taxas) não aproveitei”.
Depois de mais considerações sobre os regimes fiscais do IVA, Luís Montenegro terminou o email, declarando estar à “inteira disposição para o que entenderem necessário”, despedindo-se com um “bom trabalho e os melhores cumprimentos”. Em jeito de nota de rodapé, fez questão de declarar que só muito “esporadicamente” visualizava a caixa de correio do partido, usando apenas a do governo.
Em dezembro de 2024, o Ministério Público acabaria por arquivar o processo. Numa nota do DIAP do Porto, refere-se que, ponderado o resultado da “prova obtida à luz do quadro legal vigente à data dos factos e da jurisprudência que sobre ele se pronunciou, considerando que a intervenção efetuada enquadra uma reabilitação de edifício localizada em área de reabilitação e que, em consequência, os benefícios fiscais atribuídos ao particular tiveram suporte no reconhecimento administrativo dessa condição de beneficiário”.
A investigação concluiu não ter recolhido “indícios de que a relação administrativa que se estabeleceu entre a administração municipal e o particular em causa tenha excedido o estrito quadro decisório de base técnico-jurídica que a deve pautar".